terça-feira, 13 de outubro de 2009

Rosto real


A viagem

Essas quatro horas e meia vão custar mais a passar do que jogo de tênis da segunda divisão, pensei ao dar partida no carro. E o pior nem era isso. O pior era chegar. Confraternização de família é tudo igual. O padeiro da esquina é mais íntimo do que metade dos que estão na festa. É tia trocando nome de sobrinho. É prima que engravida antes do tempo. É a rodinha de cá falando mal da de lá e a de lá fofocando sobre a de cá. O inferno “terrestrizado”.
Mas eu dirigia com cara de satisfeito. Afinal, era a primeira vez que saíamos “em família”. Ao meu lado, Marcela corrigia as provas de seus alunos do período da manhã. Buraco na pista e zero virava nove. Um calor dos infernos, mas ela teimava em manter o vidro fechado. “Senão estraga o penteado, amor”. O pai dela, Seu Agemiro, farda impecável como sempre, apontava as coordenadas com um olho na pista, outro no mapa de ponta cabeça. “Em frente, meu rapaz” repetia de minuto em minuto, como se brotasse uma bifurcação a cada quilômetro. Atrás de mim e ao lado do comandante a sogrona, dona Geni. Sogrona sem eufemismo. A velha devia pesar para lá de cem.
“Volta, volta. Isso. Deixa nessa estação, Rodrigo.”
“Quando te vê...”“ E os meus olhos ficam sorrindo...”
“ E pelas ruas vão te sentindo.”
“Seguindo, papai. E pelas ruas vão te seguindo.”
“Cuida da sua vida, Marcela.”
O que fiz para merecer isso? O ponteiro maior do relógio não tinha sequer completado a primeira volta!
Aturdido, não percebi a fila de carros no pedágio. Tive que frear bruscamente. Algo tocou o meu calcanhar. Ao olhar para baixo, subiu um gelo pela espinha. Maldito Lúcio. Eu não queria ter saído ontem, mas ele insistiu. “Deixa de frescura, Rodrigo. A gente fica só um pouquinho. A Marcela nem vai desconfiar. Amanhã você só viaja à tarde!” A sandália vermelha atrás do meu pé era a prova cabal. Estava encrencado, enrolado, enrascado e todos os “ados” e “idos” aplicáveis. E se ainda tivesse aprontado! Mas não. Vou pagar por um crime que não cometi. Dizia mamãe sabiamente: “Papagaio come milho e periquito leva a fama”. Eu tentei tirar o corpo na hora de ir embora da boate, mas o Lúcio insistiu. De novo. “É só uma caroninha. Nada mais do que seis quarteirões, meu irmão! Vai deixar a moça a pé a essa hora da madrugada? Deixei os dois na casa dela. Ela. Uma pessoa que nem o nome eu sabia ia me ferrar bonito!
Voltei a mim com a Marcela me estendendo um lenço de papel.
“ Nossa, amor! Que suadeira é essa?
“Fico nervoso sempre que pego estrada. Não esquenta.”
Difícil não esquentar. Meu rosto fervia. A imensa subida se aproximava e eu em quinta marcha. Nem por decreto eu tiraria o pé de cima daquela sandália.
“O carro precisa de mais força, meu rapaz”“
Está acelerado, seu Agemiro. Dá para subir. Gasolina ultimamente está custando os olhos da cara”
Antes passar por mão de vaca do que por galinha.O meu arsenal de caras complacentes estava se esgotando quando, por milagre, um acidente na pista. Trânsito lento. Era a minha chance. Atenção dos velhotes e da Marcela voltada para o fato. Abri a porta e soltei discretamente a sandália pelo vão.
Aumentei o rádio. Comecei a cantar.
“Animadinho, hein”
“É o jeito, minha linda.”
Foram dez minutos de alívio. Só podia ser provação! Bati o olho no retrovisor e um dos faróis do carro de trás piscou. E de novo. E de novo. De tão velho, o outro não devia funcionar. E não é que a passageira está sacudindo feito louca a maldita sandália vermelha! Emendei uma terceira ,uma quarta, depois a quinta.
“Que pressa é essa, meu rapaz?”
Nem me dei ao trabalho de responder. Meia hora de percurso em quinze minutos de relógio e lá estávamos em frente ao salão. Nem sinal do tal carro.
Estacionei. Todos saíram, exceto dona Geni.
“Vamos mamãe”
“Peralá, Marcela, resmungou cabisbaixa a velha. Tirei minha sandália no meio da viagem e não estou encontrando!"