segunda-feira, 2 de março de 2009
O reencontro
A diferença era brutal. As paredes enegrecidas emprestavam ao boteco um “quê” medieval. Do piso de madeira ao teto, a trepadeira, soberana, alastrava suas folhas secas. No balcão, Augusto lia o jornal, provavelmente da semana passada, com o charuto pendido no canto da boca. Quatro mesas, com quatro cadeiras cada uma completavam o cenário.
O cardápio sobre a mesa empoeirada era desnecessário, sabia muito bem o que você pediria se estivesse aqui comigo.
- Augusto, marguerita, por favor!
Da bolsa, tirei o papel tingido pelo tempo. Uma lágrima escorreu e, furiosa, espatifou-se sobre a carta que você escrevera após a nossa primeira discussão.
Despejei o pó esbranquiçado na bebida. A luz rala penetrava pela única janela e, refletida nas pedras de gelo do copo, deixava o ambiente ainda mais soturno.
Doze meses. Trezentos e sessenta e cinco dias. Oito mil setecentas e sessenta horas sem você. Um ano carregando aquela maldita imagem. Ai Sofia! Sua feição não entregava o sofrimento dos meses anteriores. Talvez porque você não quisesse que eu soubesse mesmo eu já sabendo e, quando chegou a hora, fez força para esconder atrás de um sorriso a terrível dor que te causava a desgraçada doença.
Duas da manhã em ponto. Exatamente a hora que, ao lado de você não presente, estava eu, somente eu. Imóvel, junto àquele caixote marrom que emoldurava o que sobrou de você. Tinha certeza que, daquele minuto em diante, estaria à deriva no mar revolto.
Ai, companheira! Dez anos que mais pareceram cem! Sofia, Sofia. A lembrança dos teus beijos ainda estremece meus alicerces, descompassa meu coração.
Com uma colher, remexi o preguiçoso pó no fundo do copo.
A primeira noite! Meus lábios já estavam anestesiados antes mesmo de você encostar os seus. As pernas, num ato de rebeldia, não obedeciam ao cérebro. Sentia, ao mesmo tempo, a coluna gelada e o peito fervendo. Homem algum conseguiria aquilo.
Mas não demora nosso reencontro, amor. Sem ninguém a espiar de canto de olho; a cochichar enquanto nos beijamos. Está chegando o dia de sentir novamente em suas têmporas, o coração pulsando as sílabas do meu nome. Não, não somos almas gêmeas. Gêmeos não se amam tão intensamente. Somos a mesma alma.
Por que te chamam assim, Criador? Que Deus és tu?
O quarto estava escuro, porém romântico. Ela, com a camisola florida, veio ao meu encontro trazendo duas taças de champanhe e um par de olhos, meio ingênuos, meio maliciosos. Beijou meu pescoço nervoso e, descendo até metade das costas, arrancou-me um suspiro que jamais imaginei caber em mim. Acabava de descobrir o amor.
Às vezes, acho que foi bom. Ou no mínimo, didático. O que era desconfiança, agora é certeza: essa verdade absoluta que nos empurram goela abaixo desde criança não é tão verdadeira assim. Divindade e razão não poderiam coexistir. Divindade é o estado de espírito que algumas pessoas atingem, sem relação com deuses ou crenças. Atingem, justamente por não estarem presas a uma razão infundada.
Essa razão, presente na grande maioria dos homens, não permite que vejam que são menos racionais do que sua limitada racionalidade pode conceber. Homens e mulheres que vivem, mediocremente, até caírem no abismo da morte. Como você era diferente deles, Sofia. Trazia consigo divindade e razão, impossíveis aos outros mortais. Agora, estou mais vazia do que o propósito de vida dessas insignificantes criaturas.
Augusto pigarreou. Foi o suficiente para que eu voltasse.
A pouca luz agora ofuscava minha visão. Uma golada, cinco minutos, estaria novamente em seus braços.
Vencida a última página do jornal, Augusto fitou-me por alguns segundos longos. Abaixou-se. Estrondo. Ajoelhou-se ao meu lado. A fumaça ainda saia pelo cano preto e lustroso. Com a mão desocupada sobre o meu peito ensangüentado e lágrimas nos olhos, ele revela:
- Sempre amei Sofia.
O cardápio sobre a mesa empoeirada era desnecessário, sabia muito bem o que você pediria se estivesse aqui comigo.
- Augusto, marguerita, por favor!
Da bolsa, tirei o papel tingido pelo tempo. Uma lágrima escorreu e, furiosa, espatifou-se sobre a carta que você escrevera após a nossa primeira discussão.
Despejei o pó esbranquiçado na bebida. A luz rala penetrava pela única janela e, refletida nas pedras de gelo do copo, deixava o ambiente ainda mais soturno.
Doze meses. Trezentos e sessenta e cinco dias. Oito mil setecentas e sessenta horas sem você. Um ano carregando aquela maldita imagem. Ai Sofia! Sua feição não entregava o sofrimento dos meses anteriores. Talvez porque você não quisesse que eu soubesse mesmo eu já sabendo e, quando chegou a hora, fez força para esconder atrás de um sorriso a terrível dor que te causava a desgraçada doença.
Duas da manhã em ponto. Exatamente a hora que, ao lado de você não presente, estava eu, somente eu. Imóvel, junto àquele caixote marrom que emoldurava o que sobrou de você. Tinha certeza que, daquele minuto em diante, estaria à deriva no mar revolto.
Ai, companheira! Dez anos que mais pareceram cem! Sofia, Sofia. A lembrança dos teus beijos ainda estremece meus alicerces, descompassa meu coração.
Com uma colher, remexi o preguiçoso pó no fundo do copo.
A primeira noite! Meus lábios já estavam anestesiados antes mesmo de você encostar os seus. As pernas, num ato de rebeldia, não obedeciam ao cérebro. Sentia, ao mesmo tempo, a coluna gelada e o peito fervendo. Homem algum conseguiria aquilo.
Mas não demora nosso reencontro, amor. Sem ninguém a espiar de canto de olho; a cochichar enquanto nos beijamos. Está chegando o dia de sentir novamente em suas têmporas, o coração pulsando as sílabas do meu nome. Não, não somos almas gêmeas. Gêmeos não se amam tão intensamente. Somos a mesma alma.
Por que te chamam assim, Criador? Que Deus és tu?
O quarto estava escuro, porém romântico. Ela, com a camisola florida, veio ao meu encontro trazendo duas taças de champanhe e um par de olhos, meio ingênuos, meio maliciosos. Beijou meu pescoço nervoso e, descendo até metade das costas, arrancou-me um suspiro que jamais imaginei caber em mim. Acabava de descobrir o amor.
Às vezes, acho que foi bom. Ou no mínimo, didático. O que era desconfiança, agora é certeza: essa verdade absoluta que nos empurram goela abaixo desde criança não é tão verdadeira assim. Divindade e razão não poderiam coexistir. Divindade é o estado de espírito que algumas pessoas atingem, sem relação com deuses ou crenças. Atingem, justamente por não estarem presas a uma razão infundada.
Essa razão, presente na grande maioria dos homens, não permite que vejam que são menos racionais do que sua limitada racionalidade pode conceber. Homens e mulheres que vivem, mediocremente, até caírem no abismo da morte. Como você era diferente deles, Sofia. Trazia consigo divindade e razão, impossíveis aos outros mortais. Agora, estou mais vazia do que o propósito de vida dessas insignificantes criaturas.
Augusto pigarreou. Foi o suficiente para que eu voltasse.
A pouca luz agora ofuscava minha visão. Uma golada, cinco minutos, estaria novamente em seus braços.
Vencida a última página do jornal, Augusto fitou-me por alguns segundos longos. Abaixou-se. Estrondo. Ajoelhou-se ao meu lado. A fumaça ainda saia pelo cano preto e lustroso. Com a mão desocupada sobre o meu peito ensangüentado e lágrimas nos olhos, ele revela:
- Sempre amei Sofia.
Ausência confirmada
A imagem, ao mesmo tempo estranha e familiar, causou-lhe certa satisfação. Eram vários homens ao espelho. Na verdade, todos que o formaram nestes trinta e três anos. Observou cada detalhe, cada vestígio emprestado. As enormes olheiras contrastavam com a simetria helênica do rosto. Sorriu ao apalpar a mancha maior, que sustentava o olho esquerdo. Uma atípica sensação brotou-lhe no estômago, cresceu pelos pulmões e explodiu garganta afora:
- É agora!
Gargalhou e repetiu eufórico:
- Agora! Agora!
Ah, como eram belas aquelas manchas roxas! Mais que as horas de ensaio, revisões dos diálogos e figurino simbolizavam toda uma trajetória prestes a culminar no seu espetáculo, sua própria peça teatral.
- O casaco, sussurrou o assistente esticando o braço pela porta entreaberta.
- Deixa ai na cadeira.
Como um raio o pensamento das últimas semanas voltou e substituiu-lhe a feição tensa por uma afável: a platéia vidrada no palco; atores e espectadores em plena sintonia; o teatro não lotado, mas com as pessoas que deveriam ali estar.
Reservou, na primeira fila, o melhor lugar. Não que fosse cauteloso, mas a ocasião exigia tal preocupação. A idéia de que estava prestes a compartilhar sua maior realização o excitava mais do que a realização em si. Sempre estimou muito os amigos, o poder de escolha inerente à amizade o excitava, ao contrário do acaso que lhe parecia ser a família.
O que ele sentia por Eduardo era diferente. Mesma escola, mesmos heróis de infância, mesmos gestos. Sempre foram o mesmo. Cúmplices antes mesmo de entenderem o significado da palavra cumplicidade.
Eduardo sempre foi conselheiro. Das possibilidades fazia certeza. Entre eles, a diferença de dois anos, e, apesar disso, Eduardo era o alicerce que Fábio não tinha em casa.
- Um dia você vai ser um grande ator, Fabinho. Vou te aplaudir, em pé!
Fábio franziu a testa ao pensar no prometido aplauso. Assustou-se com a correspondência do movimento ao espelho. Os poros pareciam trabalhar em hora extra. As papilas salivares, entretanto, censuravam aos lábios o direito da separação.
O primeiro sinal ecoou camarim adentro. Puxando o casaco felpudo, despiu suavemente o encosto da cadeira e lembrou-se da primeira vez que se meteu a atuar. No primário, foi o protagonista de uma montagem de A Bela e a Fera. “Quantas primeiras vezes foram ao seu lado!” – murmurou, abençoando-se com o sinal da cruz de baixo para cima.
- Você não é ateu? – indagou sua companheira de cena que espiava pelo vão.
Bateu a porta. De um lado a outro intercalava passos largos e curtos. Os olhos buscavam um ponto para o repouso. Sentou-se, levantou-se, sentou-se. O movimento para enxugar o rosto ensopado foi bruscamente interrompido pela sensação de familiaridade com aquele pedaço de papel. Foi num lenço idêntico que ele e o amigo compuseram a primeira música, deviam ter uns nove anos. Metade da letra era palavrão; a outra metade escandalizou a maioria dos que a ouviram no alpendre da casa de um deles.
Reescreveu os trechos que lembrava, dobrou cuidadosamente o papel e guardou o agora amuleto no bolso do casaco.
Ao longe, numa outra atmosfera, tilintou o segundo sinal. Era o som envelhecido do sino da faculdade. Manhã chuvosa de quarta-feira, aula de Tecnologia da Construção, Fábio encontrou na mochila do amigo o bilhete que procurava. Com a voracidade de uma criança frente ao pote de sorvete, desdobrou o papel. Folha imensa para as poucas palavras. “... isso não tem nada a ver com você. E não se esqueça: quando os poucos que me consideram estiverem reunidos ao meu redor, é fundamental que esteja tocando Beethoven!”
O terceiro sinal bateu feito uma flecha nos tímpanos. O coração descompassado não condizia com os tamborins ritmados ao fundo.
Como uma noiva que tira o véu para o primeiro beijo, as cortinas se abriram.
A cadeira vazia refletiu a sua alma. As olheiras já não eram belas; o roxo, a cor da melancolia, da estola diaconal no momento da extrema unção. Os ombros curvados e os braços estendidos ao longo do tronco davam-lhe um aspecto primitivo.
Doou-se então com dedicação extra ao primeiro personagem, já que este iniciava o ato lamentando a perda do melhor amigo. Os violinos da Nona Sinfonia rasgaram-lhe o âmago do espírito.
- É agora!
Gargalhou e repetiu eufórico:
- Agora! Agora!
Ah, como eram belas aquelas manchas roxas! Mais que as horas de ensaio, revisões dos diálogos e figurino simbolizavam toda uma trajetória prestes a culminar no seu espetáculo, sua própria peça teatral.
- O casaco, sussurrou o assistente esticando o braço pela porta entreaberta.
- Deixa ai na cadeira.
Como um raio o pensamento das últimas semanas voltou e substituiu-lhe a feição tensa por uma afável: a platéia vidrada no palco; atores e espectadores em plena sintonia; o teatro não lotado, mas com as pessoas que deveriam ali estar.
Reservou, na primeira fila, o melhor lugar. Não que fosse cauteloso, mas a ocasião exigia tal preocupação. A idéia de que estava prestes a compartilhar sua maior realização o excitava mais do que a realização em si. Sempre estimou muito os amigos, o poder de escolha inerente à amizade o excitava, ao contrário do acaso que lhe parecia ser a família.
O que ele sentia por Eduardo era diferente. Mesma escola, mesmos heróis de infância, mesmos gestos. Sempre foram o mesmo. Cúmplices antes mesmo de entenderem o significado da palavra cumplicidade.
Eduardo sempre foi conselheiro. Das possibilidades fazia certeza. Entre eles, a diferença de dois anos, e, apesar disso, Eduardo era o alicerce que Fábio não tinha em casa.
- Um dia você vai ser um grande ator, Fabinho. Vou te aplaudir, em pé!
Fábio franziu a testa ao pensar no prometido aplauso. Assustou-se com a correspondência do movimento ao espelho. Os poros pareciam trabalhar em hora extra. As papilas salivares, entretanto, censuravam aos lábios o direito da separação.
O primeiro sinal ecoou camarim adentro. Puxando o casaco felpudo, despiu suavemente o encosto da cadeira e lembrou-se da primeira vez que se meteu a atuar. No primário, foi o protagonista de uma montagem de A Bela e a Fera. “Quantas primeiras vezes foram ao seu lado!” – murmurou, abençoando-se com o sinal da cruz de baixo para cima.
- Você não é ateu? – indagou sua companheira de cena que espiava pelo vão.
Bateu a porta. De um lado a outro intercalava passos largos e curtos. Os olhos buscavam um ponto para o repouso. Sentou-se, levantou-se, sentou-se. O movimento para enxugar o rosto ensopado foi bruscamente interrompido pela sensação de familiaridade com aquele pedaço de papel. Foi num lenço idêntico que ele e o amigo compuseram a primeira música, deviam ter uns nove anos. Metade da letra era palavrão; a outra metade escandalizou a maioria dos que a ouviram no alpendre da casa de um deles.
Reescreveu os trechos que lembrava, dobrou cuidadosamente o papel e guardou o agora amuleto no bolso do casaco.
Ao longe, numa outra atmosfera, tilintou o segundo sinal. Era o som envelhecido do sino da faculdade. Manhã chuvosa de quarta-feira, aula de Tecnologia da Construção, Fábio encontrou na mochila do amigo o bilhete que procurava. Com a voracidade de uma criança frente ao pote de sorvete, desdobrou o papel. Folha imensa para as poucas palavras. “... isso não tem nada a ver com você. E não se esqueça: quando os poucos que me consideram estiverem reunidos ao meu redor, é fundamental que esteja tocando Beethoven!”
O terceiro sinal bateu feito uma flecha nos tímpanos. O coração descompassado não condizia com os tamborins ritmados ao fundo.
Como uma noiva que tira o véu para o primeiro beijo, as cortinas se abriram.
A cadeira vazia refletiu a sua alma. As olheiras já não eram belas; o roxo, a cor da melancolia, da estola diaconal no momento da extrema unção. Os ombros curvados e os braços estendidos ao longo do tronco davam-lhe um aspecto primitivo.
Doou-se então com dedicação extra ao primeiro personagem, já que este iniciava o ato lamentando a perda do melhor amigo. Os violinos da Nona Sinfonia rasgaram-lhe o âmago do espírito.
Meu marido é homem
Não sou feliz, mas tenho marido.
Adversativa. Socialmente adversativa!
Eis meu retrato:
Cabelos castanhos, rosto empalidecido,
Católica
Mulher do, não mulher!
Antes da queda do muro,
Da construção do teto,
O véu do amor era venda
As mãos da noite, quentes.
Agora,
O suicídio não choca,
Instiga!
Conformidade,
Reputação...
Pessoa. Primeira ou terceira?
O vácuo
Adversativa. Socialmente adversativa!
Eis meu retrato:
Cabelos castanhos, rosto empalidecido,
Católica
Mulher do, não mulher!
Antes da queda do muro,
Da construção do teto,
O véu do amor era venda
As mãos da noite, quentes.
Agora,
O suicídio não choca,
Instiga!
Conformidade,
Reputação...
Pessoa. Primeira ou terceira?
O vácuo
Lições do português
Hoje pela manhã bateu aquela saudade dos tempos de colégio. Nostalgia gratuita que, vez por outra, alimenta uma ilusão semi-esquecida. Goma de mascar embaixo da cadeira, lápis no chão para contemplar a calcinha da professora, baladas no pátio embaladas ao som do Di Georgio e as aulas de português. Ah! Como eu gostava das aulas de português. Sempre admirei o que as palavras podiam mostrar, mas o fascínio maior era por aquilo que elas escondiam; que diziam sem dizer.
Apropriando-me da “parte pelo todo”, posso garantir que grandes lições foram e são ensinadas, mas não necessariamente aprendidas.
Um dos equívocos mais comuns cometidos mesmo por alunos aplicados no passado diz respeito aos verbos. Amar, por exemplo. Somente conjugado no presente do indicativo, afirmativo, na primeira pessoa do singular. E sempre questionado em terceira. Cisma de que haja de fato essa terceira pessoa? Bem provável.
A transferência de atributos que este verbo vem sofrendo é, no mínimo, curiosa. Eu amo virou eu possuo. Te amo é você me pertence. Pessoas se tornaram objetos: diretos quando usados explicitamente e indiretos quando uso é dissimulado. Tudo para que o tal verbo não seja conjugado no pretérito, ainda mais no perfeito, que de perfeito nada tem.
Já o verbo respeitar é um tanto quanto paradoxal. Apesar de estar na pauta de muitas discussões, é inconjugável na maioria das situações.
Em conflito, está o modo imperativo: não vai! Vou sim! Volta aqui! Volto nada! A conseqüência deste discurso é uma acentuada desobediência à concordância. A voz reflexiva até tenta consertar. Em vão. A ativa toma o lugar da passiva e vice-versa e o que resta é o silêncio cortante da incoerência.
O vocativo, antes esquecido e amparado pelas vírgulas, agora passeia soberano pela boca de quem ordena: Fulano, chega! Cicrano, pára!
As coordenadas não têm mais vez. Foram engolidas pelas subordinadas. Subordinação que não se restringe apenas às orações, ramificando-se para os pronomes possessivos, os adjetivos mal empregados e, principalmente, para o sujeito, antes simples, agora composto. E, muitas vezes, por um fenômeno lingüístico, composto e oculto ao mesmo tempo. E essa regência imposta, sequer o Professor Paschoali é capaz de compreender.
Nem mesmo a conotação poética de algumas frases tais como “você é tudo para mim” ou “você é uma rosa”, consegue remendar erros interpretativos da vida afetiva. As figuras de linguagem, exceto a hipérbole e a metáfora, parecem ter se rebelado contra a coesão, derivando-se assim tempos e os modos primitivos, vigentes nesse tipo de envolvimento.
Se seguissem às orientações do velho Aurélio, alguns preceitos já seriam concebidos de forma diferente. Segundo ele, relacionamento é a ligação afetiva condicionada por uma série de atitudes recíprocas.
Reciprocidade. Liberdade. Sufixos iguais, palavras complementares numa relação.
E como a língua portuguesa condena o didatismo exato, a verborragia aí de cima pode ser interpretada como convir ao leitor.
Apropriando-me da “parte pelo todo”, posso garantir que grandes lições foram e são ensinadas, mas não necessariamente aprendidas.
Um dos equívocos mais comuns cometidos mesmo por alunos aplicados no passado diz respeito aos verbos. Amar, por exemplo. Somente conjugado no presente do indicativo, afirmativo, na primeira pessoa do singular. E sempre questionado em terceira. Cisma de que haja de fato essa terceira pessoa? Bem provável.
A transferência de atributos que este verbo vem sofrendo é, no mínimo, curiosa. Eu amo virou eu possuo. Te amo é você me pertence. Pessoas se tornaram objetos: diretos quando usados explicitamente e indiretos quando uso é dissimulado. Tudo para que o tal verbo não seja conjugado no pretérito, ainda mais no perfeito, que de perfeito nada tem.
Já o verbo respeitar é um tanto quanto paradoxal. Apesar de estar na pauta de muitas discussões, é inconjugável na maioria das situações.
Em conflito, está o modo imperativo: não vai! Vou sim! Volta aqui! Volto nada! A conseqüência deste discurso é uma acentuada desobediência à concordância. A voz reflexiva até tenta consertar. Em vão. A ativa toma o lugar da passiva e vice-versa e o que resta é o silêncio cortante da incoerência.
O vocativo, antes esquecido e amparado pelas vírgulas, agora passeia soberano pela boca de quem ordena: Fulano, chega! Cicrano, pára!
As coordenadas não têm mais vez. Foram engolidas pelas subordinadas. Subordinação que não se restringe apenas às orações, ramificando-se para os pronomes possessivos, os adjetivos mal empregados e, principalmente, para o sujeito, antes simples, agora composto. E, muitas vezes, por um fenômeno lingüístico, composto e oculto ao mesmo tempo. E essa regência imposta, sequer o Professor Paschoali é capaz de compreender.
Nem mesmo a conotação poética de algumas frases tais como “você é tudo para mim” ou “você é uma rosa”, consegue remendar erros interpretativos da vida afetiva. As figuras de linguagem, exceto a hipérbole e a metáfora, parecem ter se rebelado contra a coesão, derivando-se assim tempos e os modos primitivos, vigentes nesse tipo de envolvimento.
Se seguissem às orientações do velho Aurélio, alguns preceitos já seriam concebidos de forma diferente. Segundo ele, relacionamento é a ligação afetiva condicionada por uma série de atitudes recíprocas.
Reciprocidade. Liberdade. Sufixos iguais, palavras complementares numa relação.
E como a língua portuguesa condena o didatismo exato, a verborragia aí de cima pode ser interpretada como convir ao leitor.
Ninfa
Inocente alma tão crua;
Pecado a que estou sujeito;
Alva, linda, minha lua;
Grita desejo, arde o peito.
Atitudes minhas, suas;
Devaneios, não direitos;
Feita para que eu destrua,
Dobre tais costumes retos.
Pecado a que estou sujeito;
Alva, linda, minha lua;
Grita desejo, arde o peito.
Atitudes minhas, suas;
Devaneios, não direitos;
Feita para que eu destrua,
Dobre tais costumes retos.
Amigo inseparável
Setenta e cinco, com corpinho de noventa. Confesso que nunca conheci uma pessoa tão metódica quanto o Seu Pereira. É sagrado: às seis está em pé, um café forte, duas ou três páginas do jornal e lá está ele cochilando na cadeira de plástico do alpendre.
Na sala, ai de quem tirar um badulaque sequer do lugar. Conserva na estante, com muito orgulho, as fotos dos tempos da guerra, quando liderou a frente de batalha brasileira.
O velho é muito apegado ao seu companheiro Lençoval. Um lenço antigo, uma raridade. Presente do pai no leito de morte. Lindo, o Lençoval: marrom, com listras beges e roxas na diagonal.
Todo dia, antes de sentar-se para o almoço, tira o dito cujo do bolso e coloca sobre a mesa. Um espirro durante a refeição, lá está o amigo. Tosse não programada entra em cena novamente o fiel companheiro. Ao final, costumeiramente, o bigode do velho cede ao lenço o último grão de arroz que se prende aos poucos fios brancos.
Inesquecível uma tarde dessas, quando convidei Seu Pereira para um café em minha casa. Assim que chegou, sentou-se e eis que a tragédia veio à tona: o Lençoval escorregou da sua mão e caiu ao lado da minha cadeira. Era óbvio que, com todos aqueles anos nas costas, não seria capaz de resgatar o companheiro. Mas, até então, fingi que não tinha visto, torcendo para que...
- Meu filho, por favor, pega o lenço pra mim!
Não tive saída. Salvei o indefeso pedaço de pano das ferozes mordidas do Rex.
Mais tarde me contou sobre a despedida mais dolorosa da sua vida. Recém-casado, teve que embarcar para a guerra e deixar a esposa. O que o confortava era saber que teria a companhia do seu amigo durante o combate.
- Minha esposa, no cais, ficava cada vez menor, mais longe. Eu do navio, alternava o Lençoval entre sacudidas de adeus, lágrimas e assuadas de nariz. Nesse dia fiz a promessa de que, se voltasse a vê-la não lavaria nunca mais meu amigo de pano.
Nem ouvi o final da história. Corri para o banheiro e coloquei para fora todo o meu almoço.
Na sala, ai de quem tirar um badulaque sequer do lugar. Conserva na estante, com muito orgulho, as fotos dos tempos da guerra, quando liderou a frente de batalha brasileira.
O velho é muito apegado ao seu companheiro Lençoval. Um lenço antigo, uma raridade. Presente do pai no leito de morte. Lindo, o Lençoval: marrom, com listras beges e roxas na diagonal.
Todo dia, antes de sentar-se para o almoço, tira o dito cujo do bolso e coloca sobre a mesa. Um espirro durante a refeição, lá está o amigo. Tosse não programada entra em cena novamente o fiel companheiro. Ao final, costumeiramente, o bigode do velho cede ao lenço o último grão de arroz que se prende aos poucos fios brancos.
Inesquecível uma tarde dessas, quando convidei Seu Pereira para um café em minha casa. Assim que chegou, sentou-se e eis que a tragédia veio à tona: o Lençoval escorregou da sua mão e caiu ao lado da minha cadeira. Era óbvio que, com todos aqueles anos nas costas, não seria capaz de resgatar o companheiro. Mas, até então, fingi que não tinha visto, torcendo para que...
- Meu filho, por favor, pega o lenço pra mim!
Não tive saída. Salvei o indefeso pedaço de pano das ferozes mordidas do Rex.
Mais tarde me contou sobre a despedida mais dolorosa da sua vida. Recém-casado, teve que embarcar para a guerra e deixar a esposa. O que o confortava era saber que teria a companhia do seu amigo durante o combate.
- Minha esposa, no cais, ficava cada vez menor, mais longe. Eu do navio, alternava o Lençoval entre sacudidas de adeus, lágrimas e assuadas de nariz. Nesse dia fiz a promessa de que, se voltasse a vê-la não lavaria nunca mais meu amigo de pano.
Nem ouvi o final da história. Corri para o banheiro e coloquei para fora todo o meu almoço.
Carícia
Benditos dedos que partilham do mesmo
Sangue bombeado pela força incompreensível
A quem não sente.
Passeiam em euforia, desgovernados
Sem motivo para tamanha inquietação,
Pois conhecem as curvas que tateiam.
Tremor de menino pequeno,
Conseqüência do desejo acumulado.
E, quando em brasa, os lábios se encontram
Dá-se a explosão silenciosa.
Sangue bombeado pela força incompreensível
A quem não sente.
Passeiam em euforia, desgovernados
Sem motivo para tamanha inquietação,
Pois conhecem as curvas que tateiam.
Tremor de menino pequeno,
Conseqüência do desejo acumulado.
E, quando em brasa, os lábios se encontram
Dá-se a explosão silenciosa.
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