segunda-feira, 2 de março de 2009

Amigo inseparável

Setenta e cinco, com corpinho de noventa. Confesso que nunca conheci uma pessoa tão metódica quanto o Seu Pereira. É sagrado: às seis está em pé, um café forte, duas ou três páginas do jornal e lá está ele cochilando na cadeira de plástico do alpendre.
Na sala, ai de quem tirar um badulaque sequer do lugar. Conserva na estante, com muito orgulho, as fotos dos tempos da guerra, quando liderou a frente de batalha brasileira.
O velho é muito apegado ao seu companheiro Lençoval. Um lenço antigo, uma raridade. Presente do pai no leito de morte. Lindo, o Lençoval: marrom, com listras beges e roxas na diagonal.
Todo dia, antes de sentar-se para o almoço, tira o dito cujo do bolso e coloca sobre a mesa. Um espirro durante a refeição, lá está o amigo. Tosse não programada entra em cena novamente o fiel companheiro. Ao final, costumeiramente, o bigode do velho cede ao lenço o último grão de arroz que se prende aos poucos fios brancos.
Inesquecível uma tarde dessas, quando convidei Seu Pereira para um café em minha casa. Assim que chegou, sentou-se e eis que a tragédia veio à tona: o Lençoval escorregou da sua mão e caiu ao lado da minha cadeira. Era óbvio que, com todos aqueles anos nas costas, não seria capaz de resgatar o companheiro. Mas, até então, fingi que não tinha visto, torcendo para que...
- Meu filho, por favor, pega o lenço pra mim!
Não tive saída. Salvei o indefeso pedaço de pano das ferozes mordidas do Rex.
Mais tarde me contou sobre a despedida mais dolorosa da sua vida. Recém-casado, teve que embarcar para a guerra e deixar a esposa. O que o confortava era saber que teria a companhia do seu amigo durante o combate.
- Minha esposa, no cais, ficava cada vez menor, mais longe. Eu do navio, alternava o Lençoval entre sacudidas de adeus, lágrimas e assuadas de nariz. Nesse dia fiz a promessa de que, se voltasse a vê-la não lavaria nunca mais meu amigo de pano.
Nem ouvi o final da história. Corri para o banheiro e coloquei para fora todo o meu almoço.

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