segunda-feira, 2 de março de 2009

O reencontro

A diferença era brutal. As paredes enegrecidas emprestavam ao boteco um “quê” medieval. Do piso de madeira ao teto, a trepadeira, soberana, alastrava suas folhas secas. No balcão, Augusto lia o jornal, provavelmente da semana passada, com o charuto pendido no canto da boca. Quatro mesas, com quatro cadeiras cada uma completavam o cenário.
O cardápio sobre a mesa empoeirada era desnecessário, sabia muito bem o que você pediria se estivesse aqui comigo.
- Augusto, marguerita, por favor!
Da bolsa, tirei o papel tingido pelo tempo. Uma lágrima escorreu e, furiosa, espatifou-se sobre a carta que você escrevera após a nossa primeira discussão.
Despejei o pó esbranquiçado na bebida. A luz rala penetrava pela única janela e, refletida nas pedras de gelo do copo, deixava o ambiente ainda mais soturno.

Doze meses. Trezentos e sessenta e cinco dias. Oito mil setecentas e sessenta horas sem você. Um ano carregando aquela maldita imagem. Ai Sofia! Sua feição não entregava o sofrimento dos meses anteriores. Talvez porque você não quisesse que eu soubesse mesmo eu já sabendo e, quando chegou a hora, fez força para esconder atrás de um sorriso a terrível dor que te causava a desgraçada doença.
Duas da manhã em ponto. Exatamente a hora que, ao lado de você não presente, estava eu, somente eu. Imóvel, junto àquele caixote marrom que emoldurava o que sobrou de você. Tinha certeza que, daquele minuto em diante, estaria à deriva no mar revolto.
Ai, companheira! Dez anos que mais pareceram cem! Sofia, Sofia. A lembrança dos teus beijos ainda estremece meus alicerces, descompassa meu coração.

Com uma colher, remexi o preguiçoso pó no fundo do copo.

A primeira noite! Meus lábios já estavam anestesiados antes mesmo de você encostar os seus. As pernas, num ato de rebeldia, não obedeciam ao cérebro. Sentia, ao mesmo tempo, a coluna gelada e o peito fervendo. Homem algum conseguiria aquilo.
Mas não demora nosso reencontro, amor. Sem ninguém a espiar de canto de olho; a cochichar enquanto nos beijamos. Está chegando o dia de sentir novamente em suas têmporas, o coração pulsando as sílabas do meu nome. Não, não somos almas gêmeas. Gêmeos não se amam tão intensamente. Somos a mesma alma.
Por que te chamam assim, Criador? Que Deus és tu?
O quarto estava escuro, porém romântico. Ela, com a camisola florida, veio ao meu encontro trazendo duas taças de champanhe e um par de olhos, meio ingênuos, meio maliciosos. Beijou meu pescoço nervoso e, descendo até metade das costas, arrancou-me um suspiro que jamais imaginei caber em mim. Acabava de descobrir o amor.
Às vezes, acho que foi bom. Ou no mínimo, didático. O que era desconfiança, agora é certeza: essa verdade absoluta que nos empurram goela abaixo desde criança não é tão verdadeira assim. Divindade e razão não poderiam coexistir. Divindade é o estado de espírito que algumas pessoas atingem, sem relação com deuses ou crenças. Atingem, justamente por não estarem presas a uma razão infundada.
Essa razão, presente na grande maioria dos homens, não permite que vejam que são menos racionais do que sua limitada racionalidade pode conceber. Homens e mulheres que vivem, mediocremente, até caírem no abismo da morte. Como você era diferente deles, Sofia. Trazia consigo divindade e razão, impossíveis aos outros mortais. Agora, estou mais vazia do que o propósito de vida dessas insignificantes criaturas.

Augusto pigarreou. Foi o suficiente para que eu voltasse.
A pouca luz agora ofuscava minha visão. Uma golada, cinco minutos, estaria novamente em seus braços.
Vencida a última página do jornal, Augusto fitou-me por alguns segundos longos. Abaixou-se. Estrondo. Ajoelhou-se ao meu lado. A fumaça ainda saia pelo cano preto e lustroso. Com a mão desocupada sobre o meu peito ensangüentado e lágrimas nos olhos, ele revela:
- Sempre amei Sofia.

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