segunda-feira, 2 de março de 2009

Ausência confirmada

A imagem, ao mesmo tempo estranha e familiar, causou-lhe certa satisfação. Eram vários homens ao espelho. Na verdade, todos que o formaram nestes trinta e três anos. Observou cada detalhe, cada vestígio emprestado. As enormes olheiras contrastavam com a simetria helênica do rosto. Sorriu ao apalpar a mancha maior, que sustentava o olho esquerdo. Uma atípica sensação brotou-lhe no estômago, cresceu pelos pulmões e explodiu garganta afora:
- É agora!
Gargalhou e repetiu eufórico:
- Agora! Agora!
Ah, como eram belas aquelas manchas roxas! Mais que as horas de ensaio, revisões dos diálogos e figurino simbolizavam toda uma trajetória prestes a culminar no seu espetáculo, sua própria peça teatral.
- O casaco, sussurrou o assistente esticando o braço pela porta entreaberta.
- Deixa ai na cadeira.
Como um raio o pensamento das últimas semanas voltou e substituiu-lhe a feição tensa por uma afável: a platéia vidrada no palco; atores e espectadores em plena sintonia; o teatro não lotado, mas com as pessoas que deveriam ali estar.
Reservou, na primeira fila, o melhor lugar. Não que fosse cauteloso, mas a ocasião exigia tal preocupação. A idéia de que estava prestes a compartilhar sua maior realização o excitava mais do que a realização em si. Sempre estimou muito os amigos, o poder de escolha inerente à amizade o excitava, ao contrário do acaso que lhe parecia ser a família.
O que ele sentia por Eduardo era diferente. Mesma escola, mesmos heróis de infância, mesmos gestos. Sempre foram o mesmo. Cúmplices antes mesmo de entenderem o significado da palavra cumplicidade.
Eduardo sempre foi conselheiro. Das possibilidades fazia certeza. Entre eles, a diferença de dois anos, e, apesar disso, Eduardo era o alicerce que Fábio não tinha em casa.
- Um dia você vai ser um grande ator, Fabinho. Vou te aplaudir, em pé!
Fábio franziu a testa ao pensar no prometido aplauso. Assustou-se com a correspondência do movimento ao espelho. Os poros pareciam trabalhar em hora extra. As papilas salivares, entretanto, censuravam aos lábios o direito da separação.
O primeiro sinal ecoou camarim adentro. Puxando o casaco felpudo, despiu suavemente o encosto da cadeira e lembrou-se da primeira vez que se meteu a atuar. No primário, foi o protagonista de uma montagem de A Bela e a Fera. “Quantas primeiras vezes foram ao seu lado!” – murmurou, abençoando-se com o sinal da cruz de baixo para cima.
- Você não é ateu? – indagou sua companheira de cena que espiava pelo vão.
Bateu a porta. De um lado a outro intercalava passos largos e curtos. Os olhos buscavam um ponto para o repouso. Sentou-se, levantou-se, sentou-se. O movimento para enxugar o rosto ensopado foi bruscamente interrompido pela sensação de familiaridade com aquele pedaço de papel. Foi num lenço idêntico que ele e o amigo compuseram a primeira música, deviam ter uns nove anos. Metade da letra era palavrão; a outra metade escandalizou a maioria dos que a ouviram no alpendre da casa de um deles.
Reescreveu os trechos que lembrava, dobrou cuidadosamente o papel e guardou o agora amuleto no bolso do casaco.
Ao longe, numa outra atmosfera, tilintou o segundo sinal. Era o som envelhecido do sino da faculdade. Manhã chuvosa de quarta-feira, aula de Tecnologia da Construção, Fábio encontrou na mochila do amigo o bilhete que procurava. Com a voracidade de uma criança frente ao pote de sorvete, desdobrou o papel. Folha imensa para as poucas palavras. “... isso não tem nada a ver com você. E não se esqueça: quando os poucos que me consideram estiverem reunidos ao meu redor, é fundamental que esteja tocando Beethoven!”
O terceiro sinal bateu feito uma flecha nos tímpanos. O coração descompassado não condizia com os tamborins ritmados ao fundo.
Como uma noiva que tira o véu para o primeiro beijo, as cortinas se abriram.
A cadeira vazia refletiu a sua alma. As olheiras já não eram belas; o roxo, a cor da melancolia, da estola diaconal no momento da extrema unção. Os ombros curvados e os braços estendidos ao longo do tronco davam-lhe um aspecto primitivo.
Doou-se então com dedicação extra ao primeiro personagem, já que este iniciava o ato lamentando a perda do melhor amigo. Os violinos da Nona Sinfonia rasgaram-lhe o âmago do espírito.

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